sábado, 9 de janeiro de 2010

Sem Taiwan, todo o mundo sai perdendo













Publicado originalmente no site Congresso em Foco.






Além de terminar melancolicamente, com pouco mais que a unânime constatação acaciana de que o mundo precisa se unir e fazer mais para deter a escalada do aquecimento global, a COP-15 ainda cometeu o mesmo erro injusto em que a maior parte da comunidade interrnacional porfia há muitos anos: manteve Taiwan excluída dos debates e negociações sobre mudanças climáticas.




Isso é uma lástima por várias razões.E aqui estão cinco delas.




1 - A Lei de Controle da Poluição das Águas de Taiwan é uma das mais antigas do gênero, datando de 1974. De lá para cá, mesmo barrado das conversações internacionais, o país cumpre voluntária e escrupulosamente o disposto pela Convenção de Viena e o Protocolo de Montreal sobre controle de clorofluorocarbono (CFC, um perigo para a camada de ozônio) no marco da Declaração do Rio e da Convenção de Basileia contra poluentes orgânicos persistentes (POPs), o que comprova a seriedade do compromisso do governo de Taipé com os valores e práticas do desenvolvimento sustentável. É rematada burrice internacional permitir, em função de pretextos políticos e ideológicos herdados da Guerra Fria, o desperdício desse acervo de experiências e realizações, em vez de compartilhá-lo em proveito da humanidade e do seu futuro.







2 - O veto absoluto à participação do governo taiwanês nos eventos e atividades ligados à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climátocas (UNFCCC, na sigla em inglês) -- instituição que engloba, entre outras normas, o Protocolo de Kyoto -- já não reflete a atual conjuntura nos dois lados do Estreito de Taiwan, que é de progressivo desanuviamento das relações Taipé/Beijing (os voos comerciais regulares e os vínculos postais diretos já foram retomados, assim como o turismo bilateral, que não para de aumentar).








3 - A exclusão ameaça seriamente a sociedade e a economia de Taiwan. O rastro de destruição e morte recentemente deixado pelo tufão Morakot atesta que a ilha, densamente povoada, é vulnerável a algumas das mais bruscas e anormais alterações climáticas, situação que só tende a piorar enquanto Taiwan seguir privada de acesso aos recursos que a UNFCCC coloca à disposição dos seus membros, como o sistema de alerta antecipado sobre desastres naturais. Da mesma forma, enquanto permanecer marginalizado do mercado de carbono, o país enfrentará imensas dificuldades para converter suas indústrias aos requisitos de uma economia verde.








4 - Como membro da Organização Mundial do Comércio (OMC), mas não do Protocolo de Kyoto, como a maioria esmagadora dos seus parceiros comerciais, Taiwan não consegue proteger suas exportações das barreiras não-tarifárias de caráter ambiental por eles impostas com frequência cada vez maior.








5 - Em termos per capita, Taiwan já é o 18°. maior emissor mundial de gases de efeito estufa; mesmo assim, não tem direito de participar plenamente do intercâmbio de dados, informações, conhecimentos e novas ideias sobre o aquecimento global, nem de colocar sua tecnologia e seus recursos a serviço da cooperação internacional para a pesquisa e o financiamento de opções para a efetiva descarbonização das economias do planeta. Com filiais das suas maiores empresas espalhadas pelo globo, Taiwan poderia investir em vários países em desenvolvimento, inclusive o Brasil, para a implementação de Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL), caso estivesse integrada no marco regulatório da UNFCCC.




Tomara que esse equívoco, de graves prejuízos para Taiwan e para o mundo inteiro, seja corrigido até a abertura da COP-16, marcada para dezembro de 2010, no México.



Paulo Kramer é cientista político e professor do Curso de Especialização em Análise Política e Relações Institucionais da Universidade de Brasília (UnB).

Corrida presidencial 2010 - a geografia do voto




Publicado originalmente no jornal Correio Braziliense de 04/01/2010.








O cientista político Cesar Romero Jacob, do Departamento de Comunicação da PUC-Rio, é autor de algumas das contribuições mais criativas e consistentes aos estudos eleitorais brasileiros nos últimos tempos (veja-se, por exemplo, JACOB e outros, “A eleição presidencial de 2006 no Brasil: continuidade política e mudança na geografia eleitoral, revista Alceu, v. 10, nº 19, p. 232 a 261 – jul./dez. 2009)


A originalidade do seu trabalho consiste em cruzar dados de todos os pleitos presidenciais no período da Nova República (1989, 1994, 1998, 2002 e 2006) com informações provenientes das 558 microrregiões brasileiras definidas pelo IBGE.


Como o estudo do passado -- apesar de este jamais se repetir inteiramente -- é o único meio ao nosso alcance para tentar prever o futuro, vale a pena conhecer alguns dos principais resultados das pesquisas do professor Jacob de olho na sucessão do presidente Lula, em 2010.
Em primeiro lugar, a análise do perfil demográfico, social, econômico e político de todas as microrregiões aponta três grandes vetores do voto: os grotões, pequenas cidades do interior comandadas pelo coronelismo, com cerca de 46 milhões de eleitores; as periferias pobres das metrópoles, onde a política está nas mãos das máquinas partidárias de líderes populistas e dos pastores evangélicos; e as classes médias e altas urbanas, muito divididas nas suas opiniões e atentas aos programas eleitorais e às propostas de política pública. Lula só ganhou quando, a partir da eleição de 2002, ele o seu PT conquistaram a confiança de metade a quase dois terços do conjunto desses três segmentos, adotando a estratégia de moderar seu discurso para torná-lo mais palatável ao centro do espectro político-ideológico. Aliás desde Collor (1989) até Lula (2002 e 2006), passando por FHC I e II, só chega ao Palácio do Planalto quem se mostra capaz dessa performance.


Em segundo lugar, o eleitorado costuma votar com o bolso. No pleito de 2006, Lula se reelegeu vencendo disparado entre as classes mais pobres, graças aos programas sociais do seu governo (Bolsa-Família, Luz para Todos, aumentos do salário mínimo sempre acima da inflação).Geraldo Alckmin,seu oponente do PSDB, perdeu a eleição, mas colheu os melhores resultados de votação nas regiões onde o agronegócio exportador sofria com o real muito valorizado.
Em terceiro lugar, essas preferências socioeconômicas são georreferenciadas, isto é, Lula obteve sua votação mais maciça nos estados das Regiões Norte e Nordeste, enquanto o ex-governador Alckmin, além do seu estado de São Paulo, teve o melhor desempenho no Sul e no Centro-Oeste (redutos do moderno agronegócio).


O que nos leva a interrogar o futuro. Os prováveis candidatos dos dois partidos que, de 95 para cá, se alternam na presidência (PSDB e PT) – o governador José Serra e a ministra Dilma Rousseff, respectivamente – participarão de uma disputa inédita na história da Nova República, no sentido de que será o primeiro pleito presidencial sem Lula. Será que a ministra logrará beneficiar-se da ‘transferência do carisma’ do seu popularíssimo chefe? (Até hoje, isso nunca aconteceu em sucessão presidencial, as únicas exceções se limitam a eleições municipais: em São Paulo, 1996, Maluf ‘fez’ Pitta; no Rio, mesmo ano, Cesar Maia ‘fez’ Conde.) Será que Serra conseguirá ‘compensar’ uma previsível derrota no Norte/Nordeste, carregando de lavada, não apenas São Paulo e o Sul, mas também os dois outros grandes colégios eleitorais de Minas Gerais e Rio de Janeiro? (Na eleição passada, seu antecessor e correligionário Alckmin levou SP, mas não arrastou MG nem RJ, que foram de Lula no segundo turno.)


Bem, senhoras e senhores, façam suas apostas – já sabendo que em qualquer campanha eleitoral a única ‘pesquisa’ que realmente vale é aquela que sai das urnas.

(*) Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB) e analista da Ornelas & Ornelas – Consultoria.

Ou Serra vence em 2010 ou não vence mais

Publicado originalmente em minha coluna no Congresso em Foco.



Cada vez mais me perguntam como vejo o panorama da sucessão presidencial de 2010.
Bem, até onde a minha vista (3,5 e 4 de miopia) alcança, parece-me que ou José Serra vence a eleição do ano que vem ou jamais conseguirá fazê-lo.

Se eu ainda fosse marxista (toc, toc, toc na madeira!), diria que nunca como agora as condições objetivas do processo histórico estiveram tão favoráveis ao governador paulista. Pelo Brasil afora, Serra é conhecido e reconhecido como político veterano, administrador competente e, o que é mais relevante para a grande maioria dos eleitores, “pai dos genéricos”.

Quanto à candidata de Lula, afirmei, em entrevista ao semanário Brasília em Dia em fevereiro, que Dilma Rousseff dificilmente decolaria acima do percentual de votos amealhados pelo seu chefe no tempo em que este perdia todas as eleições: algo em torno de um terço do eleitorado. Mais recentemente, Carlos Montenegro, do Ibope, em depoimento à Veja (“Lula não fará seu sucessor”), e Alberto Almeida, sociólogo, autor dos livros A cabeça do brasileiro, Por que Lula e A cabeça do eleitor (publicados pela Record), em uma de suas contribuições quinzenais para o suplemento cultural de fim de semana do Valor Econômico, corroboraram minha precisão.
O segundo analista, particularmente, acertou na mosca: em pleitos sem reeleição, como o de 2010, a pessoa do candidato, seu currículo de realizações, é o que mais conta. Já com a possibilidade de recondução, o que o eleitor mediano, essa figura elusiva criada pelos cientistas políticos americanos, mais leva em consideração é o governo do presidente que luta por mais quatro anos no poder.

Figuras como José Serra e Aécio Neves, prossegue Melo em seu raciocínio, estão há muito tempo sob os holofotes da mídia e o escrutínio da opinião pública, ambos com muitas realizações a mostrar. Quanto ao, digamos, currículo da ministra, o que dá para prever desde já é que a oposição vai deitar e rolar no seu passado de militante da luta armada, para não dizer terrorista, e nas suas, digamos novamente, problemáticas relações com a verdade. Como afirma o sociólogo, o eleitor olha para o retrato político de Dilma e não enxerga quase nada. Mãe do PAC, que até abril último havia entregado apenas 17% dos empreendimentos programados?… Afilhada do carismático presidente da República? Sinceramente, quando se trata de eleição presidencial, creio que os analistas políticos e o povo olham para lados opostos e veem coisas diferentes.
Às vezes, receio que nossos conhecimentos acadêmicos e nossa familiaridade com os bastidores do poder levem-nos a atribuir um peso exagerado a arranjos institucionais e forças impessoais como partidos, alianças, regras da Justiça Eleitoral e por aí vai, que pouco significam para o votante. Este se restringe ao que a propaganda eleitoral mostra na TV, consolida seus julgamentos sobre as candidaturas e faz a escolha final apoiado nos papos domingueiros com a família, nas peladas de fins de semana com os amigos ou nas conversas de boteco com os colegas do serviço.

Nesses contextos de interação direta, face a face, há sempre alguém que os demais membros do grupo acreditam gostar mais, saber mais de política, por acompanhar com assiduidade e atenção acima da média o noticiário e os comentários dos jornais, do rádio all news ou da TV por assinatura. (A esses formadores informais de opinião, o falecido sociólogo de Colúmbia Robert K. Merton, pai da técnica de pesquisa por grupos focais, chamava “influentes locais”. Veja o capítulo sobre influentes locais e influentes cosmopolitas em sua obra essencial, Sociologia: teoria e estrutura. Rio: Mestre Jou, 1970.)

Resultado: o eleitor comum é mais propenso a pensar que uma eleição é uma coisa e outra eleição, outra, o que descarta como pouco provável o milagre da transferência de votos aos ungidos ou ungidas pelos grandes líderes.

Trocando em miúdos, se foi bom com Lula, isso não significa que será ruim com Serra, ou com Aécio, por mais que o presidente da República invista seu capital carismático na tentativa de persuadir o povo de que – com perdão das feministas – Dilma é o cara.

Aliás, pesquisas recentes do Ibope e de outros institutos mostram que o povão tem um faro para a chamada política por trás das políticas públicas – the politics of public policy – às vezes superior ao dos pundits convidados aos programas de entrevistas: indagados se acreditam que o próximo presidente, seja quem for, acabará com o Bolsa Família, cerca de 80% dos seus beneficiários entrevistados cravam um confiante não! É mais uma política pública considerada como um dado da paisagem socioeconômica, conforme ocorreu antes com o real, que, graças ao compromisso anti-inflacionário legado por FHC e reafirmado por Lula, impede que o dinheirinho do Bolsa Família mantenha seu poder de compra e não vire pó instantâneo nas mãos dos seus recipiendários.

Caminhando para a conclusão, se os Estados Unidos têm a October surprise, aquele escândalo vazado um mês antes da eleição de novembro, capaz de inverter as tendências de intenção de voto, nós, brasileiros, temos o chamado fato novo, mais ou menos com os mesmos efeitos. Os montículos de dólares caprichosamente empilhados e fotografados pela Polícia Federal que arrasaram a candidatura Roseana Sarney em 2002 são o exemplo que logo vem à mente. Os mais velhos lembrarão ainda que a brevíssima candidatura Silvio Santos, articulada por três senadores da copa-e-cozinha do então presidente da República José Sarney (Edison Lobão, Hugo Napoleão e Marcondes Gadelha, todos do PFL), foi o único incidente que chegou a trincar a inabalável autoconfiança do candidato Fernando Collor em 1989.

Quais serão os fatos novos, aqueles inesperados que todos devemos esperar, da próxima eleição? Ainda estou montando uma listinha, em ordem decrescente de probabilidade, que até agora tem apenas três itens, a saber:
- Serra e Aécio se unem em chapa puro-sangue absolutamente invencível;- Henrique Meirelles, agora no PMDB e prestes a deixar a presidência do Banco Central, em princípio para concorrer ao governo de Goiás ou eleger-se senador, vira o delfim de Lula, substituindo, no meio da campanha, uma Dilma devastada pela recidiva do câncer linfático e com índices de preferência eleitoral em queda livre; e
- Marina Silva, do PV (ou Ciro Gomes, do PSB), chega ao segundo turno. Será que um dos dois ganha? Dificilmente.

Não quero posar de triunfalista retrospectivo, mas já correndo seriamente esse risco, sugiro aos meus escassos leitores que pesquisem na internet para ver se acham – e, se acharem, por gentileza, me repassem o link!! – as entrevistas realizadas pela Globo News/Brasília logo na sequência da primeira vitória de Lula, em 2002: ao que eu saiba, fui o único convidado que se arriscou a prever que Meirelles, recém-eleito deputado federal, o mais votado de Goiás, pelo PSDB, tinha boas chances de ser conduzido ao comando do BC.

Bola de cristal? Que nada, pura lógica! Se a permanência de Armínio Fraga sinalizava um excesso de continuísmo insuportável para o caudilho petista do “nunca antes na história deste país…”, e se Aloizio Mercadante era então o mais eminente dos economistas nos quadros do seu apedêutico partido, então se afigurava provável que a autoridade monetária pudesse ser dirigida por um outsider experiente e com forte prestígio perante a banca internacional. Não deu outra.
Por fim, depois de arriscar minha credibilidade em tantos vaticínios, descanso meus miolos no aconchego de uma constatação acaciana: seja quem for o próximo inquilino do Palácio do Planalto, o PMDB continuará sendo a espinha dorsal da base político-parlamentar de qualquer governo. Não sei por que ainda não surgiu algum gênio da marquetagem sugerindo a mudança da legenda para PDMN (Partido do Mal Necessário).

Paulo Kramer é cientista político e professor do Curso de Especialização em Análise Política e Relações Institucionais da Universidade de Brasília (UnB).

Entrevista - Antônio Paim (livro "Marxismo e Descendência")

Segue um papo entre o filósofo Antônio Paim, o médico e humanista Antônio Roberto Batista e Eu. Divirtam-se!

http://www.youtube.com/watch?v=GzulTLVH5Jo

Resenha do livro "Marxismo e Descendência", de Antônio Paim




PAIM, Antonio, Marxismo e descendência. Campinas: Vide Editorial, 2009


"...E há doutrinas essencialmente malignas porque, desde a origem, negam ao homem o direito à sua própria consciência e ao discernimento. Se alguém pensou em comunismo, fez muito bem .Qualquer equação que faça do homem objeto de uma engenharia social é demoníaca -- seja na perspectiva religiosa, seja na não-religiosa. O desastre é certo."
(Reinaldo Azevedo)

Desde que mergulhei nas primeiras páginas desta obra, voltaram, do fundo do poço do passado, a ecoar-me na memória as famosas palavras de Karl Marx (1818-1883) estampadas no não menos famoso "Prefácio" da Contribuição à crítica da economia política (1859). Referindo-se a um manuscrito, produzido por volta de 1845, em colaboração com o inseparável amigo, co-autor e financiador do seu ócio criativo, Friedrich Engels (1820-1895), ele justificou a decisão de não publicá-lo e abandoná-lo à critica voraz das ratazanas, alegando que o texto já cumprira plenamente a sua missão de permitir à dupla "um ajuste de contas com a nossa consciência filosófica anterior". Assim, Marx referiu-se à sua matriz intelectual no neo-hegelianismo de esquerda. O manuscrito seria finalmente publicado quase 90 anos depois, em 1932, pelo Instituto de Marx-Engels, de Moscou, sob o título de A ideologia alemã.
Até hoje, fico em dúvida sobre qual teria sido o melhor destino para o rascunho marxiano – a sanha dos roedores ou o prelo? Já quanto ao mais recente livro de Paim, não hesito em afirmar que ele nasce predestinado a um lugar de destaque entre as melhores obras de interpretação do marxismo, suas raízes intelectuais e terríveis consequências sociopolíticas e culturais, tais como Main currents of Marxism: its origin, growth and dissolution, do filósofo polonês Leszek Kolakowski (1927-2009, Oxford University Press, 1981, 3 vols. Ed. espanhola: Alianza Editorial); O marxismo de Marx, do sociólogo e politólogo francês Raymond Aron (1905-1983; ed. bras.: Arx, 2005); O passado de uma ilusão: ensaio sobre a ideia comunista no século XX, do historiador e também francês François Furet (1927-1997; ed. bras: Siciliano, 1995); e Rumo à Estação Finlândia, do crítico americano Edmund Wilson (1895-1972; ed. bras.: Companhia das Letras, 1987). Quem conhece a trajetória de Paim (nascido em 1927) sabe que Marxismo e descendência é seu grandioso e definitivo ajuste de contas com a ideologia que marcou existencialmente as suas primeiras opções políticas e intelectuais.
Baiano de Jacobina, na condição de jovem estrela da intelligentsia do Partidão (Partido Comunista do Brasil, depois Brasileiro – o PCB) ele viveu a primeira metade dos anos 50 em Moscou, onde cursou a escola para quadros do antigo Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e estudou filosofia na Universidade Lomonosov. Assim, pôde testemunhar 'por dentro' os conflitos e traumas que se seguiram à morte de Josip Vissarionovitch Djugachivili, dito Stálin (1878-1953) e desembocaram nas revelações de seu sucessor e ex-acólito, Nikita Sergueievitch Krushov (1894-1971), no XX Congresso do PCUS, em 1956, sobre inúmeros crimes contra os direitos humanos e brutais violações da chamada legalidade socialista no longo período de terror staliniano -- terror que, na verdade, já começara sob Lênin, conforme bem documenta o livro. Havendo rompido total e definitivamente com o comunismo, voltou ao Brasil e aprofundou seus estudos na antiga Faculdade Nacional de Filosofia da hoje UFRJ, sob a orientação do professor Djacir Menezes, cearense e notável pensador hegeliano (1907-1996). Muito embora a difícil conjuntura política brasileira de meados da década de 60 tenha inviabilizado seu projeto de tese sobre o marxismo (pendência intelectual e existencial de que pôde livrar-se somente agora, com a obra aqui resenhada), Paim viria a construir sólida, frutífera e múltipla carreira como: historiador da filosofia pátria (a exemplo de A Escola do Recife, publicado pela primeira vez em 1966, seu livro de estreia, ou de História das ideias filosóficas no Brasil, primeira edição de 1967, Prêmio Instituto Nacional do Livro de Estudos Brasileiros de 1968, hoje na quinta edição, revista e ampliada, pela editora da Universidade Estadual de Londrina, 1997, Prêmio Jabuti 1985 de Ciências Humanas); pensador liberal (e.g., O liberalismo contemporâneo, terceira edição de 2007, pelo Instituto de Humanidades, Londrina); pioneiro no ensino a distância de humanidades (primeiramente com o Curso de Introdução ao Pensamento Político Brasileiro, em co-autoria, pela Universidade de Brasília/UnB, durante a década de 80, e depois com o Curso de Humanidades, também em co-autoria, disponibilizado gratuitamente no site do mesmo Instituto de Humanidades); intérprete da formação e da realidade contemporânea brasileiras (Momentos decisivos da história do Brasil, Martins Fontes, 2000); e também incansável formulador e divulgador de ideias e propostas para a consolidação dos pressupostos cívicos e culturais ao enraizamento do sistema representativo liberal-democrático neste solo devastado pela herança da Contrarreforma e do positivismo cientificista com enxertos marxistas, à sombra do multissecular patrimonialismo luso-brasileiro, em suas versões retrógradas ou modernizantes (exemplos:Pombal e a cultura brasileira, em co-autoria, Tempo Brasileiro, 1982, O relativo atraso brasileiro e sua difícil superação, Senac, 2000, A querela do estatismo, segunda ed.,Tempo Brasileiro,1994, e Cidadania: o que todo cidadão precisa saber, também em co-autoria, Expressão e Cultura, 1999).
O magistério superior foi outra esfera da vida da inteligência e da erudição onde a influência de Antonio Paim revelou-se (e até hoje revela-se) igualmente fecunda. Sua rota de saída do marxismo foi iluminada pela filosofia transcendental de Immanuel Kant (1724-1804), na vertente do culturalismo, escola de pensamento com raízes no historismo de filósofos neokantianos alemães como Wilhelm Dilthey (1833-1911), Wilhelm Windelband (1848-1915), Heinrich Rickert (1865-1936) e Emil Lask (1875-1915). Essa que ficou conhecida como Escola de Baden, ou do Sudoeste da Alemanha – em razão das lições desses pensadores com famosas universidades como Heidelberg e Tübingen, localizadas no atual estado de Baden-Württemberg, cuja capital é Stuttgart – teve repercussão na sociologia compreensiva de Max Weber (1864-1920).
Para culturalistas como Paim e seu saudoso amigo Miguel Reale (1910-2006), o insígne jusfilósofo paulista, a moral desempenha papel essencial nos processos históricos onde os seres humanos constroem e reconstroem seu mundo social com referência a valores. (Para uma esclarecedora visão de conjunto, veja-se, PAIM, Antonio, Problemática do culturalismo, PUC-RS, 1995). Nessa perspectiva, Paim formou várias gerações de discípulos, membro que foi do corpo docente da UFRJ, da PUC-Rio e da Universidade Gama Filho. Alguns desses ex-alunos e antigos orientandos avançaram pelas sendas indicadas pelo mestre com trabalhos de relevo no panorama do pensamento brasileiro, como Ricardo Vélez Rodríguez, da Universidade Federal de Juiz de Fora, historiador das ideias positivistas no Brasil e analista do impacto do patrimonialismo ibérico na realidade latino-americana; e Leonardo Prota, hoje à frente do supramencionado Instituto Humanidades, em Londrina, e autor de estudos sobre as dimensões nacionais e universais de algumas das principais correntes filosóficas contemporâneas. Bem verdade que o convívio acadêmico, infelizmente, nem sempre resultou-lhe tranquilo ou mesmo civilizado, conforme deixou registrado na coletânea Liberdade acadêmica e opção totalitária: um debate memorável, de 1979, onde documenta a destruição do programa de pós-graduação em filosofia brasileira do Departamento de Filosofia da PUC, com linhas de pesquisa introduzidas pioneiramente por Paim e associados, em decorrência das perseguições orquestradas por adeptos da Teologia da Libertação – esse sinistro conúbio entre o totalitarismo marxista e os ecos messianistas da Contrarreforma –, sob o comando do jesuíta Henrique Lima Vaz.
Na obra ora em apreço, Paim mobiliza sua gigantesca capacidade de processar informações históricas e sistematizar criativamente as melhores contribuições do pensamento para conduzir o leitor nesta longa jornada de análise e avaliação da doutrina marxista. Ele sinaliza o caminho dividindo o livro em três blocos (Partes I a III): “A doutrina marxista do Estado”; “A doutrina marxista da sociedade”; e “A doutrina marxista do pensamento”.
Correndo o risco de estourar os limites razoáveis de espaço e tempo à disposição de uma resenha deste trabalho tão denso quanto volumoso (565 páginas de texto), procurarei discutir os aspectos que me pareceram mais relevantes sob a tríplice perspectiva da política, da sociologia e da filosofia marxistas construída por Paim.

O marxismo e o Estado

O cerne da Parte I consiste na pesquisa das origens e dos fundamentos da afinidade, historicamente verificada, entre a doutrina política de Marx, quando convertida em ‘religião oficial’ do Estado soviético resultante da Revolução de 1917, e os avatares mais despóticos do regime que a sociologia política de Weber (vejam-se, por exemplo, os dois volumes do seu monumental Economia e sociedade, publicado pela Editora da UnB) caracteriza como patrimonialismo. Esse subtipo da dominação tradicional – que, na classificação weberiana, figura ao lado dos tipos carismático e racional – legal de dominação – se define por traços como forte concentração de poderes nas mãos do soberano, a qual não permite a separação nítida entre a fortuna privada deste e o patrimônio público; a administração exercida por vasto corpo de burocratas, agentes e beneficiários dessa centralização; e uma população submetida ao jugo do arbítrio e do paternalismo, incapaz de estabelecer limites eficazes ao poder do soberano e dos seus funcionários, na ausência de instituições representativas sólidas (partidos políticos), encarregadas de expressar, agregar e conciliar interesses em conflito. (A velha e carinhosa alcunha de Paizinho que os camponeses outrora dedicaram ao czar se transferiria automaticamente a Lênin e, sobretudo, Stálin...) Em poucas palavras: sob o patrimonialismo, o Estado é mais forte que a sociedade e a subjuga. Bem diversas, sempre de acordo com Weber, são a natureza e as consequências do feudalismo, outro subtipo de dominação tradicional, onde os pactos entre o rei e nobres vassalos dotados de fontes independentes de poder econômico e militar – e com a nascente burguesia das cidades mercantis medievais – prenunciam o moderno constitucionalismo na delimitação da esfera legítima para o exercício do poder do Estado.
O fenômeno patrimonialista foi brilhantemente dissecado pelo ex-comunista alemão Karl A. Wittfogel (1896-1988) no livro Oriental despotism: a comparative study of total power, publicado pela primeira vez em 1957 (Yale University Press). Estudando comparativamente as relações de dependência de comunidades agrícolas com um modelo de Estado centralizado cuja burocracia açambarcava grande fatia do excedente econômico extraído da terra e investia parte do que fora apropriado em obras hidráulicas (irrigação, controle de enchentes ) essenciais à agricultura, em civilizações tão diferentes entre si como os impérios pré-colombianos (incas, astecas), egípcio, chinês e árabe na Península Ibérica, Wittfogel descobriu a chave para compreender o solo histórico de despotismo russo de onde brotaria o totalitarismo soviético. No campo marxista, os pesquisadores que ousaram seguir o caminho desbravado por Wittfogel valeram-se do conceito de modo de produção asiático, apenas rapidamente mencionado pelo próprio Marx na passagem do já referido “Prefácio” à Crítica da economia política onde esboça sua filosofia da história, consistente na sucessão dos principais sistemas econômicos, os modos de produção da comunidade primitiva, do escravismo, do feudalismo e do capitalismo, estando este último fadado a ser superado pelo comunismo.
A via patrimonialista da construção do Estado moderno explica não apenas o destino da Rússia czarista e depois comunista, mas também o da Prússia, monarquia alemã de base agrária, dirigida por uma nobreza rural de forte pendor militarista e um estamento burocrático notavelmente disciplinado. É significativo que o grande filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), cuja influência foi definitiva no estilo de pensamento (‘dialético’) de Marx, mesmo após haver este abandonado e condenado o conteúdo idealista da doutrina do mestre em troca de uma interpretação materialista do funcionamento e da evolução das sociedades, Hegel – repito – considerava esse Estado burocrático prussiano e o seu alto funcionalismo como a mais elevada encarnação da moral. (A esse respeito, importa registrar o timbre hegeliano da exaltação do “Estado ético” por Giovanni Gentile [1875-1944], doutrinador do fascismo italiano. Cf. BOBBIO, Norberto, Do fascismo à democracia. Rio: Elsevier/Campus, 2007, esp. pp. 143-162)
Paim revela como o fascínio de Marx pela violência política, aplicada à destruição do Estado burguês e à substituição deste por uma ditadura exercida em nome do proletariado como caminho para a sociedade comunista sem classes, se iria ‘casar’ às mil maravilhas com a tradição despótica do patrimonialismo russo, tal como reinventada pelo líder maior da revolução bolchevique, Vladimir Ilitch Ulianov (1870-1924), vulgo Lênin, e consolidada pelo seu sucessor, o já referido Stálin. Em obras como o Manifesto comunista (com Engels, 1848), Crítica ao programa de Gotha (1875) e A guerra civil em França (edição preparada por Engels, 1891), Marx deixou clara a sua preferência (posteriormente confirmada por Lênin) pelos métodos do revolucionário francês Auguste Blanqui (1805-1880). Advogando a tomada do poder pela força a cargo de uma minoria organizada e audaciosa, o blanquismo foi ingrediente fundamental da radicalização e do sangrento fracasso dos movimentos operários e populares parisienses tanto em 1848 quanto em 1871 – primeiramente, durante a revolução que fundaria a Segunda República francesa, destruída em 1851 pelo golpe do seu próprio presidente, Luís Bonaparte (1808-1873), restaurador do Império fundado pelo seu tio, autointitulando-se Napoleão III; e, duas décadas mais tarde, no rastro da derrota desse mesmo império na Guerra Franco-Prussiana, com o turbulento e curto (um mês e meio) episódio da Comuna de Paris. O esmagamento da comuna pelas forças militares leais ao político e historiador Adolphe Thiers (1797-1877) abriu caminho à fundação da Terceira República.
Foi assim que Marx e Engels deram solenemente as costas e votaram o desprezo mais hostil a uma experiência histórica que se revelaria duradoura e fecunda. Esta se processava, literalmente, nas suas barbas, nos principais países da Europa Ocidental, e consistia na solução da célebre Questão Social, conseqüência da Revolução Industrial e urbana, graças à progressiva incorporação das massas trabalhadoras aos direitos de cidadania e da participação das agremiações políticas que a representavam – partidos socialistas, trabalhistas, enfim, social-democratas, surgidos do seio do movimento sindical – no jogo eleitoral.
Paim sublinha que tal desfecho foi possibilitado por uma evolução histórica bem diferente da via patrimonial russa. As principais sementes desse processo ‘ocidental’ germinaram em terras inglesas, especialmente a partir da Revolução Gloriosa de 1688/1689. Esta resultou no surgimento de um governo monárquico limitado pelo Parlamento, que viria a se consolidar na forma do regime parlamentarista (ou de gabinete). De início, esse freio ao absolutismo, constituído pelo sistema representativo, refletia predominantemente os interesses dos beneficiários imediatos da revolução: a nobreza rural ‘aburguesada’ em consequência da mercantilização da agricultura. É preciso não esquecer o papel da Reforma protestante: afinal, a religião é o berço da moralidade, e o surgimento de interpretações religiosas rivais ensejou aquilo que Paim gosta de denominar de moral social consensual, o que viabilizou o convívio entre grupos com diferentes crenças. Nos dois séculos seguintes, o sistema se fortaleceu e sua legitimidade se ampliou graças ao ingresso de novos atores políticos (burguesia industrial, pequena classe média e, finalmente, os trabalhadores não-proprietários). O sufrágio se alargou até tornar-se universal, pondo fim ao chamado voto censitário, baseado em limites mínimos de renda para a qualificação do cidadão eleitor. Essa mudança política fundamental não se limitou à Grã-Bretanha, alastrando-se pelo Ocidente europeu, e teve por baliza, repito, um sistema de partidos políticos permanentes – não mais os ‘blocos parlamentares’ característicos da época de sufrágio limitado –; partidos que agora funcionavam como agregadores dos principais grupos de interesses e correntes de opinião; partidos, enfim, que se enfrentavam em eleições periódicas destinadas a formar governos moldados pela maioria ou, no mínimo, na pluralidade determinada pelas urnas, conforme o princípio da alternância no poder. Nos Estados Unidos da América, essa visão liberal plasmou a primeira e mais bem-sucedida república presidencialista da história.
Está aí resumido o vasto processo evolucionário que Paim, Vélez Rodríguez e outros autores que lhes são próximos denominam a democratização da idéia liberal, objeto, aliás, de pequena e útil coletânea organizada pelo primeiro, Evolução histórica do liberalismo (Itatiaia, 1987). Baseia-se no ‘encontro feliz’ da exigência liberal de limitação do poder do Estado sobre o indivíduo com a reivindicação democrática por decisões validadas pela maioria.
Pensadores e ativistas contemporâneos de Marx que tiveram vislumbres desse processo e se dedicaram à conquista de liberdades políticas e bem-estar social para as classes trabalhadoras se transformaram, invariavelmente, em alvo favorito do seu ódio e do seu escárnio, tachados de utópicos ou oportunistas. Foi assim com o alemão Ferdinand Lassalle (1825-1864), verdadeiro precursor da social-democracia alemã e defensor de políticas trabalhistas e previdenciárias depois astutamente colocadas em prática pelo chanceler (primeiro-ministro) Otto Von Bismarck (1815-1898), estadista prussiano conservador e líder da unificação da Alemanha (1871), com o fito de ‘esvaziar as bandeiras’ dos socialistas, a quem perseguiu durante todo o seu longo governo, encerrado em 1890. Foi assim, também, com o francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), operário, autodidata, criador da expressão socialismo científico, de que Marx e Engels se apropriaram sem jamais dar-lhe o mínimo crédito. Não seria o único, nem o pior, episódio de apropriação intelectual indébita perpetrado por Marx contra esse líder influente, favorável a negociações com o patronato e a um caminho pacífico para a afirmação social e política da classe operária, com quem o alemão disputava a direção da Associação Internacional dos Trabalhadores (a Primeira Internacional, 1864-1881). Paim deixa claro que, no livro de Proudhon, de 1840, O que é a propriedade?, reside a verdadeira origem do conceito que Marx viria a ‘reciclar’ como mais- valia, a noção-chave em torno da qual construiu sua obra maior e inacabada, O capital (primeiro volume publicado em vida do autor: 1867; e os dois últimos editados por Engels um 1885 e 1895). Ora, bem antes, Proudhon formulara o conceito de “trabalho coletivo”, um ‘todo’, significativamente maior que a mera soma das suas ‘partes’ individuais, no caso o labor de cada operário comprado pelo capitalista por meio do salário, que não paga, porém, o fruto amplificado dessas contribuições individuais. Segundo Proudhon, é embolsando a diferença entre valor do produto coletivo e o valor (consideravelmente menor) dos salários pagos aos operários, um a um, que o capitalista lucra e enriquece.
O rompimento definitivo viria em 1847, ano da publicação de A miséria da filosofia, título com que Marx parodiou uma das obras mais importantes de Proudhon, o Sistema das contradições econômicas, ou filosofia da miséria, editado no ano anterior, em dois volumes.
Nesses incidentes, Paim encontra um padrão recorrente do comportamento de Marx . Consistia este em afastar-se ruidosamente de quem antes o beneficiara aportando novos pontos de vista e sugerindo ideias úteis à correção do curso de suas pesquisas, e substituir o argumento intelectual por jorros amargos de ofensas, no intuito exclusivo de desqualificar o oponente e, se necessário, também neutralizá-lo politicamente. (Esse estilo vicioso de polêmica contaminaria Lênin e seus devotos do movimento comunista internacional: a atitude reflexa de rotular como renegados não apenas os adversários não-comunistas na esquerda democrática, mas também e principalmente os camaradas dissidentes das posições oficiais dentro do Partido.)
A briga se transmitiria às gerações seguintes.
Herdeiro célebre de Proudhon foi Jean Jaurès (1859-1914), reconhecido como o pai do socialismo francês. Na rota de seu mestre, compreendeu que a utopia socialista correspondia a uma opção moral e não a um caminho histórico determinado apenas pelos antagonismos econômicos e impessoais entre as classes. Professor universitário de filosofia e deputado à Assembleia Nacional, orientou seus seguidores na defesa da República e da via parlamentar para a melhoria progressiva da situação operária. Na virada do século XIX para o XX, período de constituição daquela que seria conhecida como Segunda Internacional, Jaurès desempenhou papel central na criação (1905) da SFIO (Seção Francesa da Internacional Operária), sigla que os socialistas gauleses continuariam a ostentar até 1969, ano em que adotaram a legenda do PSF. Três dias depois do atentado de Sarajevo (morte do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono do Império Austro-Hungaro, abatido a tiros por um estudante sérvio adepto da integração de seu país à esfera de influência russa), o episódio desencadeador da Primeira Guerra Mundial, também Jaurès era brutalmente assassinado em Paris, a 31 de julho de 1914. Enquanto viveu, procurou unidade de ação com a ala marxista da SFIO, comandada por Jules Guesde (1845/1922), antigo anarquista e ex-blanquista. Mas, pouco tempo se passou entre o fim da guerra e o abandono da SFIO por uma maioria de militantes então obcecados pela miragem grandiosa da Revolução Bolechevique, na Rússia. Esses integrantes da nova Seção Francesa da Internacional Comunista (a Terceira Internacional, fundada por Lênin em 1919 para coordenar o apoio das organizações comunistas internacionais à implantação do comunismo na Rússia) adotariam a sigla PCF somente em 1943, com a dissolução da I.C. em plena Segunda Guerra Mundial, período de aliança com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. Mas, desde aquele início, combatiam encarniçadamente seus antigos companheiros da SFIO. Era a tática lenista, aprimorada sob Stalin, do “golpe principal”: atacar com violência máxima não o inimigo de classe burguês, mas as forças com que os comunistas disputavam a direção do movimento operário-popular. Em obediência às diretrizes emanadas de Moscou, os partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas do Ocidente foram estigmatizados como social-fascistas durante a maior parte do entre-guerras. Na Alemanha, a terminante recusa dos comunistas a integrar uma ampla coligação eleitoral antinazi foi fator decisivo da chegada de Adolf Hitler ao poder.
Foi somente por volta de 1934/35, quando o nazismo lançou brutal repressão contra os comunistas na Alemanha, que a I.C. lançou o novo slogan das Frentes Populares, governos de coalizão das forças ‘progressistas’ em geral com a participação dos comunistas. Estes integrariam, portanto, o Front Populaire, chefiado pelo primeiro-ministro socialista Léon Blum (1872-1950), o qual duraria somente três anos, de 1936 a 1939. A dissolução do FP serviu de prelúdio à queda da França diante da Alemanha em meados de 1940. Um dos fatores decisivos do colapso do governo Blum foi a atitude comunista de neutralidade passiva diante do fascismo em sintonia com as novas ordens de Moscou, consequentes à assinatura do Pacto Germano-Soviético, de 1939. Somente com a ruptura deste, a partir da invasão da Rússia pela Wehrmacht de Hitler, no verão europeu de 1941, foi que os comunistas franceses se viram liberados para ingressar na Resistência, ao lado de socialistas, liberais, católicos e direitistas antifascistas.
O PCF emergiu da Libertação e do fim da Segunda Guerra como o maior partido político francês e, sem dúvida, o mais stalinista entre os seus congêneres ocidentais. A forte presença comunista nos meios sindicais, acadêmicos, jornalísticos e intelectuais em geral marcou profundamente o debate público e a vida das ideias na França.
O próprio filósofo e escritor existencialista Jean-Paul Sartre (1905-1980), cujas posições niilistas repercutiam a visão de mundo de um dos pensadores mais odiados pela esquerda – o alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) –, chegaria a proclamar o marxismo como a filosofia “insuperável da nossa época”.
Mas, nem mesmo a decadência político-eleitoral do PCF, que, a partir da convulsão nacional provocada pelas agitações estudantis de maio de 1968, não parou de encolher, perdendo muitas cadeias no parlamento, se mostraria capaz de abalar o prestígio do marxismo em França. Na segunda parte da obra, Paim procura uma resposta para essa teimosa persistência não só ali como em outros países cujas elites intelectuais sofrem de incontido fascínio pelos cacoetes filosóficos e literários parisienses, a exemplo do Brasil

Marxismo e sociologismo

Essa resposta, Paim a encontra em outra intersecção do marxismo com uma corrente de pensamento diversa e solidamente enraizada no panorama da história das ideias francesas a partir do século XIX. Trata-se do cientificismo de talhe positivista cujas origens remontam a uma vertente mecanicista do Iluminismo, cuja primeira grande expressão foi o marquês de Condocert (Jean-Antoine-Nicolas Caritat, 1743-1794). Este sonhava com a reorganização política e social da humanidade sob os mesmos parâmetros que nortearam o desenvolvimento da física-matemática newtoriana e de outras ciências naturais.
A busca de Condorcet prolongou-se na vasta obra (45 volumes) do conde de Saint-Simon (Claude-Henri de Rouvroy, 1760-1825), apóstolo de uma futura sociedade industrial, de onde o conflito, a instabilidade, a ignorância e a miséria seriam para sempre erradicados com a abolição da propriedade privada, sob a liderança de uma elite tecnocrática.
O fundador do positivismo, Augusto Comte (1798-1857), fora secretário de Saint-Simon, antes de se tornar docente da Escola Politécnica, de Paris. Comte reconstituiu a marcha do progresso da humanidade com base na sua famosa Lei dos Três Estágios, segundo a qual, depois de superar uma época teológica (dominada por superstições religiosas) e, em seguida, atravessar uma época metafísica, (quando reinava soberana a especulação filosófica), o espírito humano finalmente atingiria seu estágio final de desenvolvimento, na época positiva (ou científica). A esse desenrolar histórico corresponderia, no plano do pensamento, uma crescente sistematização das ciências (da matemática até a biologia, passando pela astronomia, a física, a química e a biologia) cujo clímax viria com a introdução da sociologia, vocábulo inventado por Comte. A descoberta de leis universais e imutáveis da organização social permitiria, afinal, o estabelecimento da convivência humana em bases estritamente racionais.
A ciência, dessarte promovida da condição de saber universalmente válido, produto da aplicação de métodos de pesquisa neutros em relação a valores, à fonte de uma nova 'moralidade objetiva', transformava-se, para sempre, em cientificismo. Tendo atingido seu auge, o saber científico se consumaria, impossibilitado de futuros avanços. Para trás ficavam todos os períodos “críticos” indicadores das contradições, dos antagonismos, das inquietudes e iniqüidades que presidiram às transições epocais. Paz social e universal, enfim!
Ora, na Alemanha da primeira metade a meados do século XIX, Hegel e alguns de seus mais irrequietos seguidoresna geração subsequente, entre os quais o jovem Marx, também formulavam vaticínios esperançosos acerca do advento de uma "sociedade racional". Além desse ponto, começava a ruptura marxista. Ao contrário do mestre de Jena, que, como reconhece Paim, fora o autêntico fundador da história da filosofia, tal como esta disciplina é entendida até o presente, Marx não aceitava que o espírito humano, concebido como pensamento, ou Ideia, fenomenalizando-se no mundo histórico, progrediria a níveis sempre mais elevados de autoconhecimento, impulsionado pelo choque incessante entre as ideias de ontem e as ideias de hoje até reencontrar-se consigo mesmo no momento culminante da objetivação da moral, que Hegel identificava com o Estado burocrático de molde prussiano, sob a direção iluminada de um estamento de altos funcionários. Nada disso! Para o Marx que lutava para se livrar da 'angústia de influência' exercida pelo idealismo alemão, iniciando esse combate com a redação de Crítica da filosofia do direito de Hegel (manuscrito de 1843 publicado pelos soviéticos somente em 1927), a fonte da mudança histórico-social não poderia ser encontrada no plano rarefeito das ideias em permanente progresso dialético, i. e., contraditório, de tese X antítese = síntese e assim por diante. A verdadeira dialética histórica jazia naquilo que Hegel relegara ao "sistema de necessidades", e Marx rebatizaria de modo de produção: as condições materiais de existência dos seres humanos de carne e osso, que, desde os primórdios, contraem relações com a natureza e entre si para produzir a satisfação de necessidades sempre cambiantes. As grandes transformações que propelem a história humana rumo à sociedade racional do futuro se nutrem do antagonismo, na infraestrutura de qualquer sociedade, entre forças produtivas, em permanente desenvolvimento, e relações de produção, que, mais cedo ou mais tarde, estorvam esse avanço. O capitalismo moderno, tal como interpretado por Marx, evidencia mais e mais a contradição insanável da produção crescentemente socializada (fábricas sempre maiores, cooperação intensificada dos trabalhadores e setores envolvidos na industrialização em massa) com a apropriação do resultados por um círculo cada vez mais restrito de capitalistas riquíssimos. Dia viria em que o proletariado se rebelaria contra esse destino de exploração e opressão, pondo por terra a infraestrutura econômica capitalista e sua correspondente superestrutura jurídica, política (o Estado burguês) e ideológica. Para Marx, a libertação do proletariado possibilitaria a emancipação da espécie humana. Se, na sociedade dilacerada em classes, toda moral é, necessariamente, moral de classe – álibi mascarador de interesses egoístas, sustentáculo de preconceitos e superstições –, então o advento de uma ética com alcance genuinamente universal pressupõe a instrumentação do proletariado com a arma do conhecimento científico das condições objetivas do processo histórico. No comunismo, nome autêntico da sociedade racional, a ciência, por fim, realiza a ética. O corolário inevitável de tudo isso (qualquer mentira, qualquer trapaça, qualquer crime, qualquer violação dos sentimentos e regras morais hoje vigentes é perdoável, mesmo desejável, se contribui para apressar o parto do futuro) deveria repugnar apenas aos cínicos defensores do status quo.
Eis aí, sublinha Paim, o 'gancho' da doutrina marxista com o positivismo cientificista de origem francesa: a conquista de uma moralidade cientificamente objetiva em decorrência da superação do capitalismo. Para fundamentar seu argumento, o autor passa em revista os principais personagens da chamada escola sociológica francesa: desde o fundador, Émile Durkheim (1858-1917), do seu sobrinho e antropólogo Marcel Mauss (1872-1950) e do maior herdeiro intelectual de ambos, o introdutor do estruturalismo, Claude Lévi-Strauss (1908-2009), até os marxistas-estruturalistas Louis Althusser (1918-1990), filósofo, e Pierre Bourdieu (1930-2002), sociólogo. De suas distintas contribuições, emerge o projeto de uma ciência social alheia a todo e qualquer valor e significado em relação a que os indivíduos orientam suas ações e interações e tão desprovida de dimensão moral como podem sê-lo as ciências naturais. A liberdade humana não passa de ilusão perante os determinismos cegos da 'estrutura' ou do 'sistema', criadores de uma multidão de 'zumbis sociológicos'. Sociologismo é a aguda definição inventada por Raymond Boudon um dos poucos cientistas sociais franceses, ao lado do já mencionado Raymond Aron, que escaparam a esse sortilégio.
Com tais observações, Antonio Paim abre alas para o terceiro e último bloco deste seu monumento intelectual, onde discute a redução do legado filosófico de Marx ao simplismo da vulgata lênino-staliniana em proveito da máquina de propaganda do poder soviético, em contraste com o revisionismo social-democrata que fundamentou a adesão do socialismo ocidental ao pluralismo ideológico, ao sistema representativo e a promoção de reformas socioeconômicas conducentes a um inédito patamar de bem-estar para as classes trabalhadoras dos países capitalistas.



Revisionismo X vulgata

Foi justamente na Alemanha, terra natal de Marx, e na vizinha Áustria, que a validade explicativa e, sobretudo, preditiva do seu pensamento enfrentou duros testes logo na virada para o século XX. Tais questionamentos decorriam tanto das novas condições socais e econômicas trazidas pela rápida evolução do capitalismo, quanto do abismo político e cultural cada vez mais largo e profundo a separar o comunismo soviético dos desenvolvimentos ocidentais.
Paim seleciona os dois maiores vultos da social-democracia de expressão germânica -- Karl Kautsky, tcheco de nascimento, súdito, portanto, da monarquia dual austro-húngara ( 1854 – 1938), e o alemão Eduard Bernstein (1850 – 1932) --, para reconstituir as linhas essenciais do debate.
Kautsky era inabalável na defesa do legado de Marx, uma herança que estava na base da amplamente reconhecida posição de vanguarda intelectual dos social-democratas de língua alemã vis-à-vis o conjunto da esquerda europeia. Suas investigações sobre a Questão agrária (título do livro que publicou em 1898) sem dúvida fortaleceram ainda mais essa reputação de superioridade.
Encarando o desafio de sistematizar, estudar e interpretar montanhas de dados estatísticos sobre a situação da agricultura e das populações rurais não apenas na Alemanha, mas em outros países capitalistas, inclusive os Estados Unidos, Kautsky percebeu que a mera transposição do esquema usado por Marx em O capital para analisar a concentração da propriedade na indústria resultava insatisfatória para a elucidação dos problemas do campo. Estes poderiam ser assim sintetizados: por que propriedades rurais de porte pequeno e, sobretudo, médio continuavam sendo mais numerosas do que as grandes fazendas geridas em moldes capitalistas? Na verdade, o número das propriedades médias por quase toda parte tendia a aumentar.
As respostas por ele encontradas não poderiam ser aqui sistematicamente reproduzidas em razão de sua complexidade. Basta, para os fins da presente resenha, esclarecer que, ao iluminar as diferenças na dinâmica de acumulação de capital entre estabelecimentos rurais de um lado, e indústrias urbanas, de outro, Kautsky prestou contribuição substantiva ao enriquecimento de teoria marxista. Algumas de suas conclusões eram de molde a desaconselhar a estatização da terra, bem como a consequente transformação dos camponeses em funcionários de um futuro Estado socialista, etapa de transição à sociedade comunista sem classes.
Não escapa a Antonio Paim o contraste dramático entre, de um lado, as propostas de Kautsky, marxista sincero, porém sensível diante dos desafios da realidade concreta ao cânone doutrinário, no contexto da incorporação dos interesses da classe trabalhadora ao sistema representativo nos países ocidentais; e, de outro, o sanguinário encaminhamento que, a partir do final dos anos 20, seria dado por Stálin à questão agrária na União Soviética. Ali, como já observado há pouco, a decisão de varrer o capitalismo do campo, via coletivização forçada das propriedades rurais, visou à destruição da base econômica da burguesia rural (os kulaks) como grupo de interesses autônomo em face do Estado-partido único.
E, portanto, uma lástima que talvez a importante dos que se lembram do nome Kantsky o associe ao infamante opúsculo de Lênin intitulado A revolução proletária e o renegado Kautsky, de 1918, em que este é vilipendiado por ousar contrapor à estratégia e às táticas violentas da ditadura do proletariado ao caminho pacífico da chegada dos representantes da classe trabalhadora ao poder mediante eleições democráticas . A social-democracia alemã, com efeito, comprovou a viabilidade dessa opção pelo seu desempenho nas urnas. Em 1890, no primeira eleição de que participou, saindo da longa ilegalidade em que Bismarck a havia jogado, o SPD conquistou 1,4 milhão de votos e 35 cadeiras no Reichstag; já no pleito de 1912, esses números evoluiriam para 4,2 milhões de sufrágio e 110 cadeiras.
A possibilidade concreta de superar a profecia marxista de pauperização crescente das massas trabalhadoras, graças ao poder de barganha conquistado por sindicatos livres e à capacidade de influir nas decisões governamentais por intermédio da política democrática, foi incorporada ao programa do SPD em 1891 (o Programa de Erfurt). O partido abandonaria, de vez, o marxismo e o dogma da luta revolucionária de classes muito depois, em 1959, no chamado Programa de Bad Godesberg (erroneamente grafado Godsberg à página 482).
É impossível dissociar essa evolução das contribuições de Bernstein, que, muito mais abertamente que Kantsky, assumia o seu revisionismo. A amizade com Engels, de quem sem aproximara durante um longo exílio em Londres (1888 a 1901), não inibiu sua disposição de apontar os equívocos de Marx no tocante à inevitável miséria crescente do proletariado, à bipolarização social daí resultante entre uma burguesia e uma classe operária mortalmente inimigas e o desenlace desse confronto em uma revolução sangrenta e seu coroamento em uma ‘ditadura da maioria contra a minoria’ como prelúdio à sociedade sem classes e, portanto, sem mais conflitos.
De volta ao seu país e à política partidária, Bernstein seria deputado ao Reichstag de 1903 a 1912 e 1918 e de 1920 a 1928.
Em obras como As premissas do socialismo e as tarefas da social-democracia (1899), É possível o socialismo científico? (1901) e O revisionismo na social-democracia, procurou distinguir entre o que deveria ser descartado e o que ainda se conservava válido no pensamento de Marx. Para Bernstein, a principal contribuição do marxismo consistiu na idéia de desenvolvimento permanente da sociedade com base nos conflitos gerados pelas mudanças técnicas e as suas repercussões na estrutura social (Convém lembrar que em 1859, além da Contribuição à crítica da economia política, veio à luz A origem das espécies, de Charles Darwin [1809-1882].)
Sua crítica centrava-se no fato de que Marx não dera a devida atenção a dimensões morais, políticas e jurídicas com capacidade de exercer impactos transformadores sobre a economia e a sociedade. Sim, o capitalismo continuava sujeito a crises cíclicas, mas a existência de instituições liberais e democráticas e o surgimento e fortalecimento de uma nova classe média de gestores e técnicos (não diretamente envolvidos na produção de mais-valia, mas na criação de condições para a reprodução ampliada do capital) operavam no sentido da melhoria progressiva da situação dos trabalhadores e da capacidade de o capitalismo sair de cada ciclo economicamente mais forte, tecnologicamente mais avançado e socialmente mais inclusivo. A grande explosão revolucionária não viria.
O que ficava de mais fértil e perene no socialismo era o seu compromisso moral com a humanização das condições de vida e trabalho na sociedade industrial. E, como advertiu Bernstein, ecoando a sabedoria neokantiana, a esfera moral não pode ser subjugada pela esfera científica: aquilo que é moralmente justo deve ser encarado precisamente nestes termos, e não como uma fatalidade cientificamente necessária. A política, como conflito de ideias e interesses não pode ser cientificamente determinada, menos ainda por uma pseudociência que, apriorística e dogmaticamente, dava como certa a fusão final entre ética e história na forma do comunismo a sociedade perfeita do futuro. Se a sociedade está sempre mudando como o admitiam os próprios marxistas, a atitude correta, de acordo com Bernstein, consistiria na valorização do “movimento” (naquilo que ele pode acrescentar em dignidade, bem-estar e conforto à vida da classe operária), e não na sacralização do “objetivo final” único: a sociedade comunista (p. 492).
O contraste dessa flexibilidade com a rigidez doutrinária que Stálin impôs ao pensamento de Marx, modelando a vulgata marxista-lenista não poderia ser mais dramático.
Nas palavras de Paim,

Com a revolução Russa [...] foi estabelecida uma interpretação oficial à qual deveriam adequar-se todos aqueles que não se dispusessem-se a aceitar ataques dos mais virulentos, de que é um exemplo típico a maneira desrespeitosa como Lênin agrediu Karl Kautsky, até então reconhecido como um dos maiores expoentes ocidentais do marxismo. A Internacional Comunista incumbiu-se de promover a integral identificação da doutrina com o comunismo soviético (p. 499)

Dentro e fora da União Soviética, a interpretação e a difusão do marxismo deveriam submeter-se aos objetivos de poder da cúpula do PCUS – ao preço, é claro, da ossificação da vitalidade filosófica da doutrina oriunda do tronco fecundo do idealismo alemão.
Preliminarmente, Paim revela que a fonte lenista da vulgata não se encontrava em nenhuma ramificação desse tronco essencialmente ocidental, mas sim em uma das vertentes da tradição intelectual russa: o mecanicismo da “teoria do reflexo” do fisiólogo Ivan Setchenov, discípulo do afamado reflexologista Ivan Pavlov (1849-1936). A subjetividade humana, em todas as suas dimensões – filosófica, estética, moral etc –, se reduziria inteiramente ao reflexo, no psiquismo humano, de fatores objetivos, exteriores ao indivíduo. (Noto, de passagem, que não é difícil compreender a conveniência desses postulados para a política de condicionamento das massas soviéticas via aplicação de doses maciças de propaganda ideológica e terror policial.)
Assim como não foi Stalin, e sim Lênin, quem inventou a repressão em massa como instrumento prioritário do poder soviético, coube àquele a missão sistematizar a doutrina que este deixara esboçada. Ao contrário da versão difundida por seus adversários, especialmente os trotskistas, não faltava a Stalin capacidade intelectual para tanto.
No seminário ortodoxo de Tblissi, na sua Geórgia natal, onde ingressara na adolescência, tomou contato com a filosofia aristotélica, que lhe seria de grande utilidade na exposição ordenada do marxismo feito dogma.
Já como militante clandestino da facção bolchevique do Partido Operário Social-Democrata Russo, liderada por Lênin, dedicou-se à análise da chamada questão das nacionalidades, tema particularmente sensível no panorama multiétnico do império czarista, e publicou a obra Anarquismo e comunismo (1907). Vitoriosa a revolução, produziu estudos sobre a questão agrária. Nos anos 20, lecionou na Universidade Sverdlov, e seu curso constituiria núcleo da futura obra Questões do leninismo.
Mas seu trabalho capital como sumo sacerdote do que se transformou na religião leiga do comunismo foi Materialismo histórico e materialismo dialético (1938), cujo método expositivo é realmente “aristotélico”. “O encadeamento conceitual flui com naturalidade. Não há avanços inesperados; cada coisa a seu tempo” (p. 507). O mundo natural e o mundo humano são realidades objetivas, independentes da consciência, na qual essas realidades se refletem, na forma das manifestações da vida espiritual, cultural e intelectual da sociedade. Materialismo, porque a matéria é o substrato da realidade e inclui o cérebro humano (órgão do pensamento) como estágio máximo de desenvolvimento da matéria. Dialético, porque o modo de desenvolvimento dessa realidade material corresponde a um movimento incessante e contraditório. Se o materialismo dialético é a cosmovisão do comunismo científico, na correta apreensão da realidade da natureza e do pensamento, o materialismo histórico só pode ser a aplicação do materialismo dialético à análise da sociedade e da história, à luz de uma esquemática filosofia da história que se desdobra nas etapas da comunidade primitiva, do escravismo, do feudalismo do capitalismo e do socialismo. Somente a URSS havia atingido este estágio, em que a ditadura do proletariado prepara o advento da sociedade comunista. A passagem de um estágio a outro, numa palavra, a mudança social, é produzida pelo antagonismo entre os dois momentos da infraestrutura (forças produtivas X relações de produção).
Na sequência, Stálin definiu o leninismo como ‘‘‘o marxismo da época imperialista e da revolução proletária. Ou, mais exatamente: o leninismo é a tática da revolução proletária em geral, e a teoria e a tática da ditadura do proletariado em particular’” (citado por Paim, p. 513).
Toda essa elaboração dogmática, porém, teria a sua legitimidade irremediavelmente comprometida por obra e graça -- involuntárias? – do próprio Stálin, que, poucos anos antes de morrer, lançaria anátema contra o grupo de linguistas soviéticos liderado por N.Y. Marr, que propunha a criação de uma ‘“língua científica’” (p. 520) de caráter supostamente universal, mas, na verdade, fundamentada na gramática e no vocabulário do idioma russo.
Em junho de 1952, essa polêmica proposta ganha as páginas do Pravda órgão oficial do PCUS. Escolado nas ramificações políticas da chamada questão das nacionalidades, Stalin entrou pessoalmente no debate com artigo (o primeiro de uma série) publicado no dia 20 daquele mês no mesmo jornal. Sua linha, de ataque contra Marr e associados era a seguinte: a linguagem não pertence à superestrutura, e a maior prova disso é que a língua russa, idioma oficial do império czarista continuou a sê-lo na Rússia pós-revolucionária. Por extensão, o mesmo raciocínio se aplicava à técnica, que consiste “na aproximação entre a língua e os instrumentos de produção” (p. 522).
Nos seus artigos seguintes, ( todos seriam republicados na forma da coletânea O marxismo e os problemas da linguística, naquele mesmo ano), o Guia Genial dos Povos – vejam só! – preconizou nada menos que liberdade de discussão como condição para expor e refutar os erros de posições como as de Marr e seu grupo. As palavras de Stalin ecoaram por outros setores do estabelecimento científico soviético, fortalecendo a argumentação daqueles que já vinham lutando contra as travas impostas pela ideologia da vulgata comunista ao avanço da física e da biologia, por exemplo. Com o vácuo de poder deixado pela morte do tirano, em 1953, esse clima de debate contagiaria os mais altos escalões do Partido até explodir no XX Congresso, com o supramencionado relatório de Krushov revelando os inúmeros crimes do terror stalinista.
Daí em diante, nem a invasão da Hungria em 1956 por tropas soviéticas, nem a letargia imposta pelo sucessor de Krushov, Leonid Brejnev, nem o esmagamento da Primavera de Praga (1968) pelos tanques do Pacto de Varsóvia – nada mais deteve o processo de deslegitimação do marxismo como religião de Estado da URSS, até a queda do Muro de Berlin (1989) e a implosão do império soviético dois anos depois.
A obra de Paim se completa, com luminosas análises da dissolução da herança marxista nos descaminhos políticos e intelectuais de figuras e correntes entre as quais destacam-se as Escola de Frankfurt, o leninismo à italiana de Antonio Gramsci (1891-1937) e autoabortada renovação daquela herança pelo húngaro Georg Lukács (1885-1971) que aceitou renegar seu livro História e consciência de classe (1923) para ser aceito de volta ao seio da fé marxista-leninista.
O balanço final de Paim é duro e, como sempre, lúcido: a experiência histórica demonstra que a doutrina marxista é incapaz de conviver com outras correntes de pensamento e ação política sem o impulso de subjugá-las e destruí-las. Sua fervorosa crença na própria superioridade como cosmovisão que detém a chave do devir humano se traduz praticamente na “defesa do sistema de partido único” (p. 578) E não adianta abandonar o jogo bruto da arena política e fugir rumo aos jardins da academia na esperança de escapar dessa volúpia totalitária. Aqui também vamos reencontrá-la em toda a sua baixeza. Que o digam o próprio Paim e tantos outros que sofreram perseguições da intelectuália marxista, há muitas décadas encastelada nos departamentos de ciências humanas...
(*) Paulo Kramer é professor de Ciência Política na Universidade de Brasília.